Curitiba Crônica: "A Partir do Que?"
'Quem só tem o espírito da história não compreendeu a lição da vida e tem sempre de retomá-la. É em ti mesmo que se coloca o enigma da existência: ninguém o pode resolver senão tu!'
Friedrich Nietzsche
Um enigma pode ser definido como “coisa difícil de definir, de conhecer a fundo, de compreender; Jogo em que se tem que decifrar algo descrito em termos obscuros, ambíguos.” A partir dessa palavra, gostaria de pensar a mulher. Por consequência me pensar, te pensar. Pensar não pelo viés sensual do enigmático, que nos excita pelo jogo do faltante, mas pela direção tormentosa de se perceber envolto a uma questão que se quer entender, aquela que desgasta o raciocínio e satura o pensamento.
A mulher é quase como se não existisse de pleno. Nós falamos de um corpo de mulher, sobre a mulher e para a mulher sem sabermos se falamos de nós ou do outro que nos constituiu: família, sociedade, cultura, estigmas, machismo, biologia, medicina e tudo o que nos rodeou enquanto seres constituintes. Antes de nascer já nos antecede uma linhagem, já é sedimentado um presente, já é sonhado um futuro, é impelido um papel, é designada uma função.
Onde está a mulher quando podemos afirmar que, em sua maioria, o que somos hoje é construção de um pensamento masculino? E mesmo quando queremos ultrapassar este masculino, ele se torna nossa referência para isso. Já que para ultrapassar, você precisa ultrapassar algo. Ou seja: eu, como mulher, decido ser independente, dona de mim, proativa na sociedade, tudo a partir da referência de um ser que me domina, de um ser que possui tudo isso que eu quero possuir.
Até hoje a partir do que construímos o feminino? A partir de qual referência se não a masculina? Esta referência masculina que nos enxerga a partir de seu desejo: o sexo. E talvez seja aí que nos perdemos em nosso próprio enigma e vagamos na linha de raciocínio, pois muitas vezes, sem querer (querendo) esquecemos da pergunta: de onde falamos quando falamos da mulher?
Talvez o que podemos estar passando atualmente com a sororidade é por um momento de desconstrução total para construção do novo. A partir do que construiremos o feminino? E, talvez, iremos ter sucesso na medida em que ouvirmos a nós mesmas como mulheres sujeitos. Construirmos o que é ser mulher de uma forma como nunca foi feita antes. Ouvindo-nos através
da referência humana ou mulher em si e não a partir da referência homem. O que, desde já, é extremamente difícil, já que vivemos contaminadas pelo que nos rodeia.
Em um processo de análise é possível perceber que nós, como filhos, chegamos à poltrona falando sobre como gostaríamos de ser parecidos ou estar à altura de nossos pais ou, ao revés, como gostaríamos de ser extremamente diferentes. A questão é: das duas maneiras eles ainda são nosso ponto de referência para ser, para nos constituir. Demora muito para chegar ao ponto de entendermos que não é nem uma coisa, nem outra: você é um pouco dos dois e ao mesmo tempo nada dos dois, porque você pode construir o que quiser de você, dependendo do que você se dispuser a ser, dependendo do que você se dispuser a fazer da sua vida.
Vejo que o processo do feminismo é muito similar. Vai demorar muito para que nós, mulheres, aprendamos a falar a partir de nós mesmas. Porque antes disso, iremos precisar identificar nossas referências, nos colocar frente a elas, lutar contra elas, aceitá-las até aonde quisermos e a partir disso responder o enigma: o que é ser mulher?"
O texto é da Stephanie Figueiredo Urbano, Psicóloga e ex-atuante do Direito. Atualmente trabalha como Psicóloga Analista de Saúde e Segurança de Trabalho em uma multinacional do setor de óleo e gás e atende como Psicóloga Clínica em Curitiba. Escreve porque às vezes as palavras e questões ocupam espaço demais na cabeça.
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